quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Era uma vez um menino

Era uma vez um menino que um dia ganhou consciência. Começou a perguntar-se porque é que ele era ele, porque é que ele estava naquele corpo, porque é que ele tinha aquele nome, porque é que ele era aquela pessoa, porque é que ele tinha aquelas características, aquele cabelo, aqueles olhos, tudo aquilo que fazia dele ele mesmo.
Era uma vez um menino que adorava a sua família, o seu país, a sua pequena vida e a sua escola. Perguntava-se porque é que o seu pai não tinha um pai, porque é que o seu avô se tinha ido embora antes de o conhecer.
Era uma vez um menino que começava a crescer devagarinho, que um dia a meio de uma trovoada viu um raio cair a poucos metros de si enquanto brincava na escola. Perguntava-se porque é que aquilo o tinha assustado tanto e ele via os outros meninos a chorar e não era capaz de chorar.
Era uma vez um menino que adorava a praia, os piqueniques com a família e amigos, aqueles dias à beira-mar naquela barraca do amigo pescador, brincar na areia, olhar para o mar e imaginar o que compunha a infinitude para lá da linha do horizonte, para lá daquilo que conseguia ver. Perguntava-se porque é que um dia, enquanto passeava à beira-mar, uma onda o quis levar, o embrulhou, o levou às voltas por entre a água que engolia enquanto se sentia incapaz de sequer chamar pelo seu pai que segundos depois o salvou por um triz.
Era uma vez um menino que pensava que tinha muitos amigos, via no seu padrinho o seu melhor amigo, ele levava-o a passear, dava-lhe muitos brinquedos engraçados e tinha um coração enorme. Perguntava-se porque é que esse seu melhor amigo tinha morrido atropelado por um carro, meses antes de se casar e de ir viver para a sua casa nova.
Era uma vez um menino que aguardava ansiosamente o Verão, altura em que chegava de França a sua tia que lhe trazia pequenas lembranças e grandes sorrisos, que lhe dizia de forma terna e carinhosa aquelas coisas “Como cresceste! Como estás a ficar um homem grande e bonito!”. Perguntava-se porque é que a sua tia se foi embora para sempre, levada pelas sombras do cancro, lá longe, sem ele se poder despedir dela.
Era uma vez um menino que havia acabado de celebrar o Natal e aguardava com entusiasmo a festa de chegada do Novo Ano. Perguntava-se porque é que a sua alegria foi levada quando a sua avó foi levada para o hospital, porque é que ela agora mal se mexia, não falava, estava sempre deitada e nem conseguia comer pela sua própria mão, porque é que ela ficaria assim durante anos neste mísero sofrimento e angústia.
Era uma vez um menino que sonhava com o casamento da sua irmã, um dia de grande festa na família, um dia pelo qual tinha esperado durante anos e que se realizava dentro de poucos meses. Perguntava-se porque é que se sentia a ter um déjà-vu ao ver o casamento da sua irmã adiado por mais um ano enquanto esteve internada por lhe ter sido diagnosticada leucemia.
Era uma vez um menino que cresceu mais e mais, que mudou de escola, que mudou, que começou a fazer novos amigos, que se apaixonou, que começou a explorar os desígnios do amor, que conheceu outros mundos sociais, outras maneiras de viver, outros países, outras culturas, outras pessoas, que decidiu dedicar o seu tempo a algo que gostava, que começou a ver a sua vida a crescer de dia para dia. Perguntava-se porque é que a vida nos obriga assim a crescer, para o bem e para o mal. Perguntava-se porque é que ele se tornava homem a cada dia que passava, a cada gesto, a cada decisão que tinha que tomar, porque é que tinha que crescer, assim quisesse ou não.
Um dia, já homem, descobriu que o mundo estava a ficar louco, que os valores se estavam a perder, que não valia a pena lutar, que os sentimentos já não existiam, que era tudo uma farsa, que a futilidade e indiferença pareciam tomar conta de tudo e todos. Descobriu na sua cruel tristeza que palavras daquelas já não significavam nada, gestos daqueles já não significavam nada, olhares daqueles já não significavam nada, abraços daqueles já não significavam nada, beijos daqueles já não significavam nada! Tudo parecia haver perdido o seu valor! De que valia então a paixão, dar de si o seu melhor, oferecer toda a sua alma a uma outra pessoa se até já um beijo se perdia no esquecimento e na indiferença de um dia para o outro? Vale a pena gostar de alguém assim? De alguém que só vê girar o mundo à volta dela própria? Que só liga ao seus vícios, vontades e necessidades sem ligar sinceramente aos outros ou mesmo ao que é melhor para si?
Era uma vez um homem, um homem grande, mas um pequeno homem. Um homem que lamentava o estado das coisas, a perda da importância do valor do significado. Perguntava-se porque é que não poderia voltar a ser menino outra vez, voltar atrás no tempo e estancar. Parar num tempo onde os sentimentos não tinham grande importância e não tinham significado. Queria voltar a ser criança, a não ter de se preocupar com beijos daqueles, com abraços daqueles, com olhares daqueles, com gestos daqueles, com palavras daquelas. Queria voltar a viver a inocência de um tempo em que tudo importava mas nada contava. Um tempo onde podia sonhar sem pensar em limites, onde podia levar a imaginação ao limite do seu próprio poder, sem ter em conta as barreiras físicas e sociais que prendem os homens grandes ao chão. Barreiras essas que fazem as pessoas cair num comodismo pleno de indiferença pelos sentimentos verdadeiros, uma indiferença onde já nem um beijo… nem um beijo daqueles tem significado…
Era uma vez um homem que estava triste por ver todo o seu esforço desprezado pelo destino. Perguntava-se se valeria a pena remar contra marés, e decidiu sensatamente deixar-se levar ao sabor do vento, desistiu de remar contra ondas de força maior que a sua e levantou a vela e destrancou o leme, pelo menos até encontrar terra de valor à vista…

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